Ao implantar o VAR no Brasil, a CBF adotou uma filosofia padrão: “mínima interferência, máximo benefício”. Pelo protocolo do árbitro de vídeo, só erros claros e óbvios devem ser revisados. Os áudios do mecanismo, divulgados pela primeira vez pela CBF, mostram diálogos em que o VAR induz a decisão do árbitro, confusões na interpretação e insegurança em uma decisão que se revelou errada contra o Bahia.
Já foram dez jogos que tiveram áudios do árbitro de vídeo liberados pela CBF. São decisões polêmicas com o pênalti não dado para o Bahia diante do Juventude —que a ouvidoria da CBF reconheceu ter sido um equívoco— e a anulação da expulsão de atleta do Athletico contra o Flamengo.
O protocolo do VAR deixa claro que a decisão final deve ser do árbitro de campo. E é ele quem deve determinar a revisão de um lance. O VAR pode sugerir que o lance seja revisto. Não está especificado até que ponto o árbitro de vídeo deve opinar na decisão.
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Questionada por meio da assessoria, a comissão de arbitragem deu o seguinte esclarecimento: “A orientação da Comissão de Arbitragem é sempre no sentido de seguir o protocolo de comunicação determinado, cabendo ao VAR passar informações claras e objetivas sobre o procedimento que está sendo checado e ao árbitro de campo a tomada de decisão final”.
Pois bem, no jogo Athletico x Flamengo, o árbitro Marielson Alves expulsou Renato Kayzer após quatro agressões em Léo Pereira. O VAR Mario Henrique Gois sugeriu uma revisão.
De início, Gois analisa a atuação de Kayzer que dava com o braço na barriga de Léo Pereira: “Até aqui nada de golpe, nada de golpe, tem uma mão aqui. Vou recomendar a revisão”.
Depois, deixa claro sua visão de que não deveria haver expulsão: “Tem uma mão aqui, em velocidade normal. Marielson, recomendo uma revisão para rever o cartão vermelho”. E completa mais adiante: “Há um contato, sim, e até um golpe na barriga, mas entendo como não suficiente para cartão vermelho”. Ou seja, de início ele não viu golpe, mas depois passou a ver.
Marielson acaba convencido: “Hummm, tá, achei que ele tinha dado com o joelho”. Gois reforça que o “braço ele até atinge”, mas afirma que a perna não atinge. O vermelho é transformado em amarelo.
O VAR reduz sua intervenção na interpretação no Bahia x Juventude, mas aí o árbitro de campo se revelou inseguro. O vídeo mostra um toque na mão do defensor do Juventude que impede o gol do Bahia. O árbitro de vídeo Adriano Milzvski chama o juiz de campo, Paulo Roberto Alves, para a revisão com a seguinte colocação: “Adriano falando, sugiro revisão possível penal”.
Paulo Roberto Alves afirmou que viu que havia um desvio, mas não sabia o ponto de contato (ou seja, onde bateu a bola). Ao chegar ao VAR, e ver as imagens, Alves se mostra inseguro: “Adriano, é o braço de apoio, né?” —não seria pênalti pela regra. Mas, neste caso, o VAR Adriano Milzvski deixa nas mãos de Alves a decisão: “Só quero que você interprete”. O árbitro de campo completa: “Vou entender como braço de apoio”.
Entendeu errado, segundo a ouvidoria de arbitragem da CBF. O órgão dá um parecer sobre lances quando requisitado por clubes: “Conclusiva e resumidamente, pois, esta Ouvidoria opina que o tiro penal se caracterizou, mas que o jogador, tendo em conta que o toque da bola em sua mão foi acidental, não deveria ser punido com expulsão, como o Reclamante alega”. O documento foi divulgado pela CBF junto com o áudio do VAR.
Em outro jogo, América-MG x Fortaleza, o árbitro de vídeo Marcio Henrique de Gois, de novo, induz a mudança de posição do juiz Flávio Souza sobre um pênalti em favor do Fortaleza em jogada do zagueiro Bauerman.
De início, Flávio deixa claro que vê um puxão com os dois braços do defensor sobre o atacante do Fortaleza. Gois afirma: “Tem um contato, mas um contato bem leve”. Em seguida, recomenda a revisão.
Com o árbitro de campo já de frente para a tela, Gois completou: “Flávio, não tem contato nas pernas, o contato, tem um contato leve na barriga. Depois, ele sente o contato e cai, ok?” Flávio Souza olha o zoom da jogada, analisa e acaba concordando: “Vou reiniciar o jogo com tiro livre indireto e tirar o cartão do jogador”.
Logo em seguida, ele é corrigido pelo VAR: “Flávio, você vai reiniciar com tiro livre indireto ou bola ao chão?” E o árbitro de campo se corrige: “Bola ao chão, bola ao chão”. Ou seja, o juiz de campo aplicaria errado a regra para continuar o jogo.
O pênalti marcado para o Palmeiras diante do Grêmio foi outro lance em que o VAR deixa clara sua posição ao descrever o lance. O árbitro de campo, Savio Pereira Sampaio, afirma que Marcos Rocha, do Palmeiras sente o contato e “já foi caindo”.
Mas o árbitro de vídeo Igor Benevenuto o corrige: “Savio, recomendo revisão possível pênalti. Jogador só vai no meio das costas do camisa 2. Em momento nenhum ele disputa a bola.” Assim, ele define que foi falta. Ao olhar no VAR, Savio concorda: “Tranco nas costas, empurrão, penal”.
É similar ao que ocorre no jogo entre Ceará x Cuiabá. O árbitro de vídeo, Pathrice Maia, afirma: “Hebert, sugiro revisão, possível penal, o atleta defensor toca no tornozelo do atacante, fazendo um trança pé”. O árbitro de campo, Hebert Roberto Lopes, vai até o vídeo. Enquanto ele assiste ao vídeo, o VAR repete: “Observa o contato no tornozelo esquerdo do atleta que faz o trança pé”. Heber concorda: “Perfeito”. E dá o pênalti.
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Há boa parte dos lances em que o VAR apenas mostra o lance ao juiz de campo e espera sua interpretação. Foi assim no caso do pênalti para o Atlético-MG diante do Grêmio, em mão de Campaz. O árbitro de campo Luiz Flávio de Oliveira só é avisado do contato da mão, assiste ao lance e decide pelo penal sozinho.
Só que, quando estava analisando o lance, Luiz Flávio afirmou sobre a cobrança de falta de Nacho que resultou no toque de mão: “Bola mais lançada do que chute a gol”. O VAR José Carlos Rocha o corrigiu: “Viu o contexto que é um chute a gol? É chute a gol, tá?”. O árbitro de campo concorda: “Chute a gol, cartão amarelo”. Essa correção não tem peso para o penal, mas gerou um cartão amarelo para Campaz. Só que não faz parte do protocolo do VAR interferir em lances de amarelo.
Nos outros jogos, verificou-se que o VAR chamou o árbitro, descreveu o lance e deixou que o juiz de campo o interpretasse. O blog perguntou à CBF se era papel do VAR dar sua opinião sobre o lance. E a entidade respondeu que o VAR tinha que passar “informações claras e objetivas”, deixando ao árbitro a decisão final. A comissão de arbitragem da confederação não comenta lances específicos.
A entidade explicou que o protocolo de comunicação entre VAR e árbitro tem os seguintes itens:
- 1) Incentivar o árbitro a liderar as conversas;
- 2) Usar linguagem simples e clara;
- 3) manter a quantidade de comunicação a um mínimo,
- 4) evitar negativas ao máximo,
- 5) Usar terminologia oficial técnico o máximo possível;
- 6) entender o valor e os perigos de perguntas muito amplas ou muito resumidas; 7) na medida do possível, o árbitro deverá reconhecer toda a comunicação do VAR (e vice-versa) idealmente, repetindo as informações recebidas para evitar mal-entendidos.